segunda-feira, 10 de outubro de 2011

As Brasas

Dois amigos saem para uma caçada matinal. Em certo ponto da floresta, Henrik avista um cervo que seria uma boa presa. Para. Tem a impressão de que o amigo Konrad, alguns passos atrás, empunha a espingarda na altura do ombro e prepara o tiro. Mas o alvo não é o cervo, e sim o próprio Henrik, que não pode ver nada. Mesmo assim, é capaz de descrever cada gesto do outro, até mesmo o fechar de um dos olhos para apurar a mira. O tremer das mãos. Após meio minuto, o cervo, único ser em cena que poderia desvelar o que realmente estava acontecendo, percebe o perigo que o ronda e corre. Os dois permanecem estacados. Pouco tempo depois, sem nada dizer, Konrad some do mapa. Henrik, certo da traição, espera pelo reencontro. Espera 41 anos. 

Essa é a maior marca do romance do húngaro Sándor Márai, autor de outros sete livros publicados no Brasil, o último deles Libertação (2009, Companhia das Letras): o laço de paixão ardente que envolve os personagens. No caso de Henrik, a paixão que o faz esperar por 41 anos para reencontrar o amigo era por sua mulher, Krisztina, e também pelo próprio Konrad. Ele não queria saber se Konrad tivera o desejo de matá-lo, ou se o traíra com Krisztina, agora já morta; Henrik, um general aposentado do Império Austro-Húngaro, tinha certeza das duas coisas. Mesmo assim, queria perguntar a Konrad se Krisztina sabia que, naquela manhã, ele tentaria matá-lo. E, além disso, indagar sobre de que valera o orgulho e a presunção dos dois. 

Ao longo de 100 páginas, Henrik e Konrad duelam num longo diálogo – que em grande parte se assemelha a um solilóquio de Henrik – em direção ao passado em comum. Nesse sentido, trata-se de um romance retrospectivo, cujas principais ações se passam em tempos idos. Mas, acima de tudo, As Brasas é um romance introspectivo, a conversa entre Henrik e Konrad parece mais uma sessão de análise onde a condição humana tem seus aspectos mais íntimos dissecados – o tom mais lírico dessas análises talvez se explique pelo começo da carreira do autor como poeta. “Não pecamos só pelos atos, mas também pela intenção que nos leva a executar determinados atos”, diz Henrik, assertivamente, em certo ponto da conversa com o amigo. Diz isso porque se sente capaz de adivinhar até mesmo as intenções de Konrad, como fez na manhã da caçada. A ligação entre os personagens do romance húngaro é tão forte que parecem todos serem irmãos univitelinos. 

Só mesmo uma ligação desta ordem poderia explicar o sentimento existente entre Henrik e sua ama, Nini. Na infância, quando levado para a casa da avó materna, no estrangeiro, o jovem Henrik adoece. Chamada às pressas para socorrê-lo, Nini soube encontrar a casa numa terra desconhecida, sem nenhuma ajuda. E cumpriu sua missão de salvar a criança, se mantendo abraçada a ela durante seis dias, “mantendo o menino em vida com o calor de seu hálito”. 

Henrik queria ser poeta. Entretanto, em certo ponto da trama, ele se desgarra. Entra para o exército, e a patente se sobrepõe ao próprio nome, como seu pai, de quem só se fala como “oficial da Guarda”. Konrad também entra para a carreira militar, mas larga tudo após o episódio da floresta. Talvez porque vivesse pensando em outra coisa, ato que para o Henrik menino definia os afazeres de um poeta, um artista que ele via em Konrad. Afinal, “ninguém pode ser músico e parente de Chopin e passar impune por isso”. 

As Brasas, primeiro livro de Sándor Márai a ser lançado no Brasil, é fruto de uma das fases mais criativas do autor. Foi escrito em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, período em que a Hungria estava destruída pela batalha entre alemães e soviéticos. O cenário desolador que o rodeava, onde a desesperança era o sentimento mor, não impediu Márai de falar sobre amor e amizade numa prosa que fez grande sucesso no mercado europeu, embora tenha encontrado dificuldades dentro de seu próprio país – Márai foi censurado durante o período em que viveu uma espécie de exílio forçado, de 1948 até o ano de sua morte, em 1989. Longe de sua pátria, onde nascera em 1900 na cidade de Kassa, Márai comete suicídio aos 89 anos, na Califórnia.
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