segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Alberto Korda, o fotógrafo da Revolução Cubana

A imagem foi um fator fundamental no êxito dos revolucionários cubanos no fim dos anos 50. Os guerrilheiros liderados por Fidel Castro sempre prezaram muito pela propaganda das ações que promoviam, iniciativa que se intensificou com a tomada do poder em 26 de julho de 1959.

Cartaz mostra Fidel como
um libertador de Cuba
Afastada a ditadura de Fulgencio Batista, o que se vê num primeiro instante é a aprovação mundial de um líder nato, comprometido com o povo cubano e que conduziria o país a melhorias sociais impensáveis nos anos anteriores. Para reforçar esse compromisso, uma das primeiras iniciativas do novo governo foi criar o jornal Revolución, veículo oficial responsável pela comunicação direta do grande líder Fidel com o seu povo. 

Desde o início, o Revolución trabalhou muito bem a questão da imagem, possuindo inclusive um encarte de quatro páginas – publicado três vezes por semana – que era dedicado somente às fotos oficiais. Entre os fotógrafos do jornal estavam Liborio Noval, Raúl Corrales e aquele que seria responsável pela fotografia mais reproduzida de todos os tempos, Alberto Díaz Gutiérrez, ou Alberto Korda, como ficou mundialmente conhecido.

Mundialmente conhecido? Essa questão é curiosa. Apesar de ser o autor da fotografia mais reproduzida do mundo, Alberto Korda colheu pouquíssimos frutos dela, tanto no que se refere aos direitos autorais que lhe eram devidos quanto ao reconhecimento público. Aliás, o nome de uma exposição organizada em Lisboa em 2009 atesta essa peculiaridade na vida do fotógrafo: Korda, o Conhecido Desconhecido.

Capa do livro de Christophe
Loviny e Alessandra Silvestri
O livro Cuba por Korda, de Christophe Loviny e Alessandra Silvestri, constrói por meio de fotos e textos a trajetória daquele que foi o responsável pela mítica foto de Che Guevara, partindo do início de seu trabalho como lambio, passando pelos estúdios Korda e finalmente chegando ao trabalho no Revolución. Neste periódico, Korda desenvolveu o importantíssimo trabalho de construção da imagem do líder de um povo subjugado da qual se apoderou Fidel Castro. Como disse o próprio Korda em uma de suas entrevistas, ele foi menos um fotógrafo oficial que pessoal de Fidel, o quer lhe permitiu uma abordagem muito mais humanizada do grande líder, um dos fatores fundamentais para a sua galopante popularidade na tomada de poder pelos guerrilheiros.

Por ironia do destino, a foto que o fez célebre foi a do comandante Ernesto Guevara, figura rara em seu trabalho. Che aparece em no máximo quatro fotografias de importância do trabalho de Korda, que se concentrava muito mais na figura de Fidel nos tempos do jornal Revolución.

Da beleza da moda à beleza do fotojornalismo

Alberto Díaz nasceu na cidade cubana de Havana em 1929. O país vivia ainda sob a influência do capitalismo americano por conta da Emenda Platt, parte do preço a ser pago pela independência conquistada em 1898. A máfia americana mantinha na ilha caribenha negócios escusos como bordéis e tráfico de drogas, fazendo com que Cuba assumisse o caráter de um país essencialmente voltado para o turismo, como uma espécie de playground para os americanos. A impressão que se tinha sobre a ilha era que lá se vivia sob uma constante festa permeada de lascívia. Na outra ponta da pirâmide social estavam os campesinos cubanos, os quais viviam na miséria completa, sem acesso à educação ou saúde básica. 

Alberto Díaz esteve muito mais ligado no começo de sua vida ao ambiente glamouroso de Havana. Foi educado num colégio protestantista, onde anos antes havia estudado com o novelista cubano Alejo Carpentier. Nesta época, segundo hipótese de seu companheiro de escola Jaime Sarusky, o fotógrafo teria desenvolvido o interesse que marcaria o início de seu trabalho na fotografia, as mulheres. “Ainda me pergunto se não foi na capela do colégio que floresceu, inconscientemente, a paixão de Korda pelas mulheres, pela beleza feminina. Éramos todos, meninos e meninas, testemunhas de sua admiração apaixonada quando se punha a contemplar as belas alunas que escutavam o sermão do pastor”, afirma Alejo em uma parte do livro.

Alberto Korda com os negativos de
suas fotos mais conhecidas
A carreira de Alberto, no entanto, não começou com tanto glamour. Nos primeiros anos como fotógrafo, trabalhou como lambio. Os cubanos chamavam assim os fotógrafos amadores que arregimentavam algum dinheiro fotografando pequenos eventos, como banquetes, batismos e casamentos. Alberto trabalhou nessa área até montar um estúdio em Havana, tendo Luis Pierce como parceiro. O primeiro endereço dos dois sócios ficava na Velha Havana, num estúdio chamado Metropolitan, criado em 1954. Depois se transferiram para frente do Hotel Capri, quando então chamaram o estúdio conjunto de Korda, com o principal intuito de homenagear o cineasta austro-húngaro Alexander Korda. Outros motivos que os levaram à escolha de tal nome foram a sua sonoridade e similitude a já consagrada marca fotográfica Kodak. 

O trabalho no estúdio levou o agora Alberto Korda a unir suas duas grandes paixões: a beleza feminina e a fotografia. Começou, para juntar dinheiro, trabalhando no setor publicitário, fotografando embalagens de salsichão e de café. Depois, partiu para a fotografia de moda. Sua técnica de trabalho era procurar por manequins inexperientes, jovens belas e elegantes que transbordassem erotismo. Korda as fotografava para anunciar perfumes, vestidos e sabonetes, conseguindo com alguma regularidade espaço para publicar suas fotos num semanário havanês – há de se destacar que Korda foi pioneiro na fotografia publicitária e de moda em Cuba.

Norka, a modelo predileta
de Korda
A principal modelo nos trabalhos de Korda era a belíssima Norka, que na visão do fotógrafo reunia todos os atributos necessários para a fotografia de moda. Korda achava que deveria fazer uma fotografia diferente da que então se fazia em Cuba. A preferência na área de modelos era dada para mulheres pequenas, gordinhas, com quadris e seios grandes. Korda pensava que deveria impressionar as outras mulheres para que comprassem as roupas que anunciava, e para tal fim esse padrão existente era ineficaz. Em Norka ele achou a reunião de características que supunha impressionar, “uma mulher com linhas muito puras’, nas suas palavras.

A menina e sua boneca de madeira:
virada na carreira de Korda
A guinada na vida do fotógrafo que o aproximou dos guerrilheiros e, por conseguinte, da Revolução Cubana foi casual. Em 1958, enquanto trabalhando num vilarejo pobre da região de Pinar de Rio, Korda deparou-se com uma menina pequena e assustada com a câmera que ele carregava. Ela era o retrato perfeito da miséria da região: vestia roupas maltrapilhas e segurava um pedaço de madeira, que usava à guisa de boneca. A ternura com que ela cuidava da sua “boneca”, que tinha inclusive uma roupa própria, comoveu Korda. A partir de então, ele passa a se interessar pela questão da pobreza no país e adere às causas revolucionárias. De 1959 em diante, Alberto Korda passa a trabalhar como voluntário para o jornal Revolución, que funcionava como meio de divulgação das ações dos guerrilheiros na ilha.

Fidel admirando o monumento
a Abraham Lincoln
Pelo jornal, Alberto Korda pôde acompanhar Fidel Castro em diversas viagens que fez, já como presidente de Cuba. Desde a primeira e controversa viagem oficial à Venezuela até a visita aos Estados Unidos, Korda sempre esteve perto de Fidel e, com suas fotografias, ajudou a construir a imagem do grande líder cubano junto à população. Talvez tenha sido essa a maior contribuição de Korda para o regime cubano – ajuda maior até do que a célebre foto de Che, da qual falaremos mais à frente. Em Cuba por Korda, fica claro que o fotógrafo matinha uma relação de amizade com Fidel Castro, se aproximando mais dele do que qualquer um dos outros fotógrafos do grupo e captando-lhe os gestos mais singulares, com especial destaque para o trabalho de Fidel junto às comunidades campesinas e nos grandes discursos.

Um episódio relatado no livro ajuda a ilustrar esse relacionamento. Na década de 60, as relações de Cuba com os Estados Unidos já estavam bem complicadas, principalmente por conta da linha dura adotada pelo presidente americano Eisenhouwer, fato que criou uma rivalidade evidente entre Cuba e Estados Unidos – acirrada ainda mais pelo alinhamento cubano aos ideais socialistas e à União Soviética. Certo dia, o presidente americano ganhou as capas dos principais jornais de seu país por ter acertado uma bola com uma só tacada num jogo de golfe. Imediatamente, Fidel pediu para Che Guevara ensinar-lhe o esporte e encarregou Korda de tirar as fotos do treinamento, em uma clara provocação aos americanos.

A foto “acidental” de Che

A foto mítica de Che, sem recortes
A foto de Ernesto Che Guevara mais conhecida e reproduzida de todos os tempos foi, segundo o seu próprio criador, “um instante de sorte”. E toda a história que envolve esse “acaso” é de uma mítica impressionante. Contudo, detenhamo-nos nos fatos que antecederam cronologicamente o clique decisivo de Korda, preâmbulo que ajuda a entender a aura mítica que esta fotografia em especial assumiu.

No dia 4 de março de 1960, Cuba esperava receber um carregamento de armas provenientes da Bélgica, que chegariam por meio do navio La Coubre. A aquisição tinha uma razão lógica de ser: com o alinhamento cada vez mais claro de Cuba ao bloco socialista, era de se esperar que houvesse uma quebra da política de boa vizinhança praticada até então pelos Estados Unidos. Cuba, por via das dúvidas, se prevenia do já experimentado jugo americano.

Acontece que, quando os funcionários do porto de Havana descarregavam a carga do La Coubre, houve uma explosão no navio que acabou vitimando 81 pessoas e deixando outras 200 feridas. A autoria da explosão foi atribuída prontamente à CIA, agência secreta americana. No dia seguinte, no enterro das vítimas do atentado, toda a cúpula do governo cubano se reuniu para um discurso em praça pública. No púlpito estavam Fidel Castro, Camilo Cienfuegos, os intelectuais franceses Jean-Paul Sartre e sua mulher Simone de Beauvoir e vários outros membros do partido governista na linha de frente. Por incrível que pareça, Che se posicionou atrás, numa segunda linha de autoridades.

Alberto Korda, que estava embaixo, junto do público, começou a fazer suas fotos para o Revolución enquadrando na sua Leica cada uma das pessoas que estava em cima do palanque. Com a câmera grudada no rosto, foi captando a expressão de um a um, até que parou em Che. Ele tinha passado à frente do palanque para observar a multidão, e o olhar do guerrilheiro argentino deteve Korda. O próprio Korda definiu assim o momento da fotografia. “Ao pé da tribuna, coberta com crepe preta, o olho fixado na minha velha Leica, eu metralhava Fidel e todos aqueles que o cercavam. De repente, através da objetiva de 90 mm, surgiu Che. Seu olhar me espantou...”. Ele tirou então duas fotos: uma na horizontal, como a câmera estava, e em seguida ajeitou a máquina rapidamente e bateu outra foto na vertical. Feito isso, Che se retirou e voltou para a segunda fila. Mas ali ainda não estava concretizada a foto que se tornaria fenômeno mundial.

A criação do mito

Ao revelar as fotos daquele dia em seu laboratório, Korda resolveu imprimir somente o frame horizontal, que foi tirado primeiro. Na foto vertical a cabeça de uma outra pessoa aparecia logo atrás do ombro de Che, poluindo um pouco a imagem. No entanto, a foto não foi utilizada no jornal do dia seguinte. Ela só sairia no Revolución em 1965, sem grande alarde ou destaque.

Cristo Morto, de Mantegna, e Che morto:
semelhança ajudou na criação do mito
O primeiro passo para a massificação da imagem de Che aconteceu em 1967, quando o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli obteve duas cópias da imagem capturada por Korda sete anos antes, para utilizá-las na revista Paris Match. As fotos foram publicadas um pouco antes da morte de Che, no dia 8 de outubro de 1967. Nas fotos de Che morto, tiradas pelo fotógrafo Freddy Alborta em Valle Grande, a figura do guerrilheiro se assemelha muito ao quadro Cristo Morto, de Mantegna, o que também colaborou bastante na difusão do mito da imagem de Ernesto Guevara. Além disso, a foto publicada por Feltrinelli trazia um recorte maior da imagem original. No original da foto tirada por Korda, é possível ver uma palmeira do lado esquerdo de Che e a meia silhueta de uma pessoa do seu lado direito; na edição entregue a Feltrinelli, não há nada além de Che Guevara na foto, e esse foi o terceiro elemento fundamental para a criação do mito através da imagem.

O trabalho de Jim Fitzpatrick
Por fim, como quarto fator importante para a difusão da foto de Che aparece o artista plástico Jim Fitzpatrick, que fez o primeiro pôster em preto, branco e vermelho do guerrilheiro cubano, sem nenhuma proteção de direitos autorais. Estavam a partir daí conjugados os fatores para a explosão da imagem de Che pelo mundo, com as primeiras aparições nos protestos estudantis de 1968 e depois por todo o mundo como um símbolo de uma ideologia. Mas qual ideologia? Esse é um fenômeno curioso: talvez pelo recorte da imagem isolando Che de qualquer lugar – o que o faz estar em todos os lugares nos quais a foto esteja – tenha feito com que sua imagem pudesse ser associada a qualquer coisa, ainda que totalmente dissonante dos ideais revolucionários que ele defendeu em vida. A foto em questão já apareceu em embalagens de cigarro, bebida e até mesmo em biquínis. Em suma, a foto de Korda ganhou o mundo como a imagem mais reproduzida do século XX, e ele auferiu pouquíssimo lucro disso, pois Feltrinelli não lhe creditou como autor da foto, fato comum à época.

Para quem se interessa pelo assunto, uma boa pedida é assistir ao documentário Chevolution, de Trisha Ziff e Luis Lopez,  que explica bem esse processo de massificação da imagem de Che Guevara. Segue abaixo o trailer do filme.


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