terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Morte em Veneza, uma história sobre o efeito arrebatador da paixão

Capa da edição lançada pela
coleção Saraiva de Bolso
Gustav Aschenbach, ou von Aschenback, como passara a se chamar após o aniversário de cinquenta anos, era um escritor no romance Morte em Veneza, de Thomas Mann. Um escritor imerso numa crise produtiva causada pela estafa. Afinal, Aschenback dedicava-se inteiramente à literatura desde tenra idade, tentando conciliar sua criação artística ao rigor moral de seus antepassados juízes, oficiais, funcionários do estado, seres que passavam bem longe de uma “espiritualidade mais profunda”, como descreve o narrador do livro. A verve artística vinha da família materna: seu avô era um mestre de capela tcheco. Dessa mistura, surge um artista peculiar, inspirado e austero, obcecado pela produtividade e eloquência, que, somadas a mais de meio século de intensa produção, agora o consumiam. 

Thomas Mann (1875-1955)
Esse é o artista que Thomas Mann nos apresenta no início de seu romance, um personagem cujos traços refletem em parte a própria biografia do autor – talvez com menor intensidade do que em Buddenbrooks, seu primeiro romance. Alemão nascido em 1875 numa família burguesa, o escritor perdeu o pai aos dezessete anos. Sem o chefe da família, os negócios que os Mann mantinham na cidade de Lübeck são abandonados, e, com o incentivo da mãe brasileira, Júlia da Silva Bruhns, Thomas passa a dedicar-se somente à literatura. Morte em Veneza é escrito em 1911, durante uma estada no hotel Lido de Veneza, mesmo local para onde Aschenback vai em busca de refúgio. 

Sim, Aschenback decide sair de Munique, onde morava, para buscar novos ares e revigorar suas energias, valores e crenças. Antes de tomar essa decisão, suas dúvidas sobre o rumo da carreira e que atitude tomar nesse momento de tensão são expostas pelo narrador. Com ares de ensaio – Thomas Mann também era ensaísta, e os diálogos de seus personagens costumavam manter o mesmo grau de articulação – os dilemas estéticos e éticos brotam nas primeiras páginas do livro. 

Björn Andresen, que viveu Tadzio no
cinema
Em Veneza, o escritor hospeda-se no Lido e lá encontra Tadzio, um jovem de beleza incomum por quem Aschenback passa a alimentar uma paixão secreta. Curiosamente, Thomas Mann também tivera uma paixão não realizada por um homem chamado Paul Ehrenberg – relação inferida pela troca de correspondência entre os dois – a qual ele se referiria mais tarde como “a experiência central de seu coração”. Autobiográfico ou não, o encantamento por Tadzio corrompe toda a retidão e integridade moral de Aschenback, que passa a fazer qualquer coisa, utilizar-se de várias artimanhas, adaptar sua rotina para ter a oportunidade de admirar o jovem em seus passeios por Veneza. 

Agora voltemos um pouco dentro da ficção de Mann. Quando da sua chegada na cidade italiana, Aschenback pega uma gôndola para chegar até o hotel Lido, só que o condutor simplesmente ignora suas ordens, tomando um sentido diferente do solicitado pelo cliente. Revoltado, o visitante alemão reclama da atitude, mas o gondoleiro o ignora. E em seguida vem o trecho: 

“(...)Uma espécie de sentimento de dever ou orgulho, a lembrança, por assim dizer, de que devia prevenir-se, fez com que recobrasse ânimo mais uma vez. Perguntou: 

 Quanto cobra pela viagem? 

Olhando por cima dele o gondoleiro respondeu: 

– O senhor pagará.” 

A atitude do gondoleiro tinha uma explicação: ele não possuía a licença para operar naquela área, e por isso tomava caminho alternativo. Ao atracar no porto, ele é advertido e tem que partir antes mesmo de receber o pagamento de Aschenback, que fora trocar o dinheiro. 

Esse episódio com o gondoleiro parece ser uma amostra do que viria a seguir; uma circunstância na qual Aschenback não tem possibilidade de interferir, assim como em sua paixão arrebatadora por Tadzio, que sublima por completo suas faculdades intelectuais e o impede de deixar a cidade, mesmo quando descobre que uma doença letal se alastra sorrateiramente. Por conta disso alguns críticos consideram essa a principal mensagem que Thomas Mann quis passar com seu romance. Num cenário em que a paixão era latente, o escritor como que alertava: “vejam a que essa abertura irrestrita à paixão, abstraindo todo intelecto, pode levar”. 

Mais tarde, em 1929, Thomas Mann ganharia o Nobel de Literatura pela sua obra, com destaque a Buddenbrooks e nenhuma menção à Montanha Mágica, romance de 1924 em que defende ideais democráticos. Em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, passa a viver no exílio, primeiro na Suíça e depois nos Estados Unidos, de onde sai em 1952 caçado pelo macarthismo. Morre em 1955, aos 80 anos, em Zurique, na Suíça. 

Morte em Veneza no cinema: imagens edificam densidade psicológica 

Luchino Visconti, responsável pela
adaptação do romance para o cinema
O romance de Thomas Mann foi levado ao cinema pelas mãos do diretor italiano Luchino Visconti, em 1971, e a sombra de um dos maiores escritores do século XX fez com que a análise do filme fosse bem rigorosa: as ligeiras mudanças que Visconti implementou no roteiro foram suficientes para acender a fúria dos críticos, cuja miopia só foi curada com o passar do tempo, trazendo o reconhecimento devido a uma adaptação que soube recompor bem a densidade psicológica de Morte em Veneza com as possibilidades discursivas oferecidas pela sétima arte. 

Gustav Mahler: morte do
compositor influenciou Mann
Para começar, o Aschenback de Visconti é músico, e não escritor; sobre essa escolha, o cineasta italiano alega que a intenção era aludir a um dos fatores que influenciaram a literatura de Mann naquele período: a morte de Gustav Mahler em Viena, em 1911 – o compositor se faz presente na trilha sonora do longa. Aliás, trilha sonora e imagens, focalizando com precisão os gestos e expressões dos personagens, substituem com maestria os dilemas internos de Aschenbach que, no romance, se manifestam no primeiro trecho, mais ensaístico, adaptação mais do que sensata. Uma sequência com as considerações iniciais do romance não daria conta da complexidade psicológica do personagem, sendo ao mesmo tempo redutiva e morosa. Por isso, o filme já começa com o músico chegando a Veneza, e as alusões mais diretas à primeira parte do livro se fazem com flashbacks, onde Aschenback conversa com um colega, também músico e, é claro, inexistente no romance. 

Pode-se dizer também que Visconti carrega um pouco mais o erotismo presente na paixão platônica entre Aschenback e o jovem Tadzio, mas essa seria uma tensão inevitável, pois as descrições apaixonadas, quase mitológicas que o escritor faz de Tadzio no livro teriam que ser traduzidas em imagens. Talvez as poucas trocas de olhares entre os dois assumam um caráter mais carnal no cinema, perdendo um pouco do singeleza quase idílica confinada na literatura de Thomas Mann; mais uma vez, uma consequência do meio em que a história está sendo contada. 

Aschenback (Dirk Bogarde) admira sua
nova aparência no espelho
O velho embriagado que Aschenback conhece no desembarque em Veneza, no filme, ganha um realce especial. Tentando dissimular a própria idade com cosméticos para desfrutar da companhia de homens mais jovens, o tal velho causa repulsa no músico. No entanto, quando a entrega à pathos atinge o grau máximo na vida de Aschenback, ele engendra uma tentativa desesperada de chamar a atenção de seu amado: pinta o cabelo, passa maquiagem no rosto e, assim como o velho, tenta esconder aquilo que é. O domínio total da paixão, que suprime totalmente o poder da razão, acaba fazendo de Aschenback aquilo que ele tanto desprezava.

Veja o trailer do filme (inglês sem legenda):

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